Por Fabiula Danielli Bastos de Sousa

 

O novo coronavirus SARS-CoV-2 trouxe consigo não somente a COVID-19, mas muitos outros desafios incluindo a reciclagem e problemas socioambientais. Devido à caracterização de pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS), países buscaram alternativas para a redução da taxa de transmissão da doença, como o distanciamento social, fechamento de fronteiras e uso de máscaras pela população. Consequentemente, compras online e via aplicativos foram incentivadas, acarretando no aumento da produção de resíduos recicláveis devido ao aumento das embalagens. 

 

 

De acordo com um balanço recente da Associação Brasileira das Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe) [1], no mês de abril de 2020 houve uma variação na quantidade e composição dos resíduos gerados no Brasil: a geração de  resíduos sólidos urbanos (que inclui resíduos recicláveis, resíduos orgânicos e rejeitos) foi 7,25% menor em relação ao mesmo mês de 2019, com aumento no volume de resíduos recicláveis entre 25 e 30%.

 

 

No entanto, muitas cooperativas, essenciais à cadeia de reciclagem, tiveram suas atividades reduzidas ou mesmo interrompidas devido à pandemia [2]. Algumas cidades dos Estados Unidos suspenderam programas  de reciclagem, em alguns países da União Europeia a gestão de resíduos foi restringida [3], e na cidade de São Paulo apenas a separação mecanizada foi continuada [4], o que  resultou, em alguns casos, na falta de materiais recicláveis nas indústrias recicladoras. 

 

Ao mesmo tempo, houve um aumento significativo no consumo de materiais plásticos como máscaras descartáveis (após o uso, não são resíduos recicláveis). Aliado a isso, algumas leis que restringiam o consumo itens descartáveis feitos de plásticos como canudos, copos, pratos e talheres foram suspensas, como ocorrido em São Paulo [5], já que o uso desses materiais contribui à redução nas taxas de contaminação/propagação  da doença, justamente por serem descartáveis. 

 

O aumento na produção de embalagens, redução na reciclagem, aumento no consumo de equipamentos de proteção individuais (EPIs) descartáveis como máscaras e luvas, e o "incentivo" ao uso de materiais descartáveis feitos de plástico devido à suspensão de leis resultaram em um grande desafio ambiental, já que a união de todos os fatores citados contribui para o agravamento de problemas socioambientais já conhecidos, como a questão dos plásticos nas águas. Alguns autores alertam sobre o acúmulo de máscaras e luvas em oceanos, mares e rios como resultado da pandemia da COVID-19 [6]. Desse modo, a pandemia da COVID-19 pode ser considerada um retrocesso em relação à questões ambientais. 

 

Qualquer material plástico quando incorretamente disposto no meio ambiente acaba indo, seja pela ação dos ventos, chuva, sistemas de drenagem ou águas residuais, para os diversos corpos d'água. Influenciados pelas intempéries e ação do meio, os processos degradativos inerentes aos materiais plásticos ocorrem e, com o passar dos anos, aquele material indevidamente disposto torna-se milhares de micropartículas de plástico  (partículas menores de 5 mm) que acabam por prejudicar a saúde humana, fauna e flora aquáticas [7–9]. Em relação à saúde humana, elas contaminam diversos itens utilizados na alimentação como o sal, açúcar, mel, peixes, água, cerveja, dentre outros [10–13]

 

 

Ainda, resultados recentes apontaram que, ao avaliar a ingestão calórica de cerca de 15% dos americanos, foi estimado que o consumo anual de microplásticos variou de 39.000 a 52.000 micropartículas dependendo do sexo e da idade, aumentando para 74.000 a 121.000 quando a inalação também é considerada [10] (ou seja, elas estão presentes até mesmo no ar que respiramos). A comprovação do consumo de microplásticos por humanos ocorreu a partir da sua verificação nas fezes humanas [14]. A Figura 1 mostra, de forma esquemática, a transformação de uma luva em  micropartículas de plástico. 

 

 

Figura 1: Esquema mostrando o processo de degradação no mar de uma luva inadequadamente descartada, sua transformação em micropartículas de plásticos com o decorrer dos anos, e seu destino em diversos alimentos e bebidas que serão consumidos pela população [17]

 

 

Em relação aos malefícios à fauna aquática, muitos animais e aves marinhas morrem devido ao consumo de plásticos (morte por inanição). Alguns ainda podem sofrer ferimentos e morrer em decorrência da pesca fantasma, ou seja, materiais que foram utilizados no passado na pesca como redes continuam "pescando" outros animais. Ou ainda, animais que vivem nas águas mas respiram fora dela podem ficar enroscados por  algum objeto plástico, levando à morte por afogamento.

 

Estes são apenas alguns dos  problemas: a literatura, infelizmente, traz uma lista de muitas outras consequências da presença indevida do plástico nas águas. Recentemente, um Pinguim de Magalhães foi encontrado morto em uma praia na cidade de São Sebastião, litoral norte de São Paulo. Durante a necropsia, uma máscara foi encontrada em seu estômago, a causa de sua morte [15]. Já em relação ao prejuízo à flora, um deles é a dificuldade das plantas em realizar a fotossíntese pela dificuldade na passagem de luz causada pela presença dos plásticos. 

 

No entanto, mesmo com todos os desafios proporcionados pela pandemia da COVID 19, a reciclagem precisa continuar. Dentre os muitos benefícios da reciclagem encontram-se a conservação do petróleo (um recurso natural não renovável, portanto, finito), economia de energia e água, redução na emissão de gases do efeito estufa [16], proporciona desenvolvimento econômico e maior equidade social através da geração de emprego e renda, além do incentivo ao consumo mais consciente e de evitar o agravamento de problemas socioambientais mencionados anteriormente. 

 

Uma das formas de contaminação da COVID-19 é através de objetos contaminados contendo o vírus ativo [17]. Assim, para evitar problemas de saúde aos trabalhadores do setor da reciclagem, é importante que as pessoas sigam um protocolo de preparação dos resíduos recicláveis produzidos nas residências: após o uso das embalagens, elas devem ser limpas para remover resíduos orgânicos, e armazenadas em sacos plásticos fechados limpos ou em caixas por um período de sete dias antes da coleta seletiva [18].

 

Dessa maneira, o tempo de sobrevivência do vírus ativo nas superfícies é ultrapassado [19]. É importante ressaltar que apenas pessoas saudáveis devem continuar ajudando a reciclagem, e realizando o protocolo previamente descrito. Os resíduos produzidos por pessoas contaminadas (resíduos contaminados) devem ser colocados em dois sacos fechados, não preenchendo-os até o total (em torno de 3/4 da capacidade total do saco), e descartados como rejeitos com um rótulo "COVID-19", não na coleta seletiva, mesmo sendo resíduos recicláveis [17]. Além disso, no local de trabalho dos profissionais do setor da reciclagem, as normas de higiene devem ser reforçadas, como a mudança frequente e limpeza de EPIs e roupas profissionais, uso de luvas e máscaras profissionais e lavagem frequente das mãos [20]

 

De acordo com os 3Rs da sustentabilidade, ou seja, reduzir, reutilizar e reciclar, é necessário reduzir na fonte, sempre que possível e o máximo possível, o consumo de produtos plásticos e consequente produção de resíduos. Portanto, mesmo sabendo da importância da reciclagem para nossa sociedade, é preciso ter em mente que a reciclagem não é uma solução mágica capaz de resolver todos o problemas relacionados aos resíduos recicláveis. Os 3Rs clamam ao consumo consciente de todo e qualquer produto plástico que, após o término de sua vida útil, será um resíduo capaz de gerar/agravar problemas socioambientais graves.  

 

A pandemia ainda não acabou, e as atividades estão voltando lentamente à "nova" normalidade. Porém, um aumento no número de novos casos é observado em países europeus, acarretando em restrições em alguns casos ainda mais severas que as sofridas no início da pandemia. Muito provavelmente essa tendência chegará ao Brasil, não se sabe ainda quando, mas precisamos estar preparados, inclusive o setor de reciclagem do país. Que os conhecimentos adquiridos até o momento, bem como as experiências  vivenciadas, possam ser úteis no futuro que se aproxima, unindo a segurança dos trabalhadores do setor da reciclagem, consciência ambiental de toda a sociedade, e redução de problemas socioambientais como o caso dos plásticos nas águas. 

 

 

1 Centro de Desenvolvimento Tecnológico, Universidade Federal de Pelotas.

2 Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal do ABC.

 

Referências

[1] Fornari, M.: 10 anos após a PNRS, pouca coisa mudou. Saneamento Ambiental, 10–13 (2020).

[2] Diretrizes técnicas e jurídicas para a coleta seletiva e triagem de materiais  recicáveis durante a pandemia de COVID-19 - Conselho Nacional do Ministério  Público Available online:  https://www.cnmp.mp.br/portal/images/noticias/2020/maio/26-05_DIRETRIZES_COLETA_SELETIVA_E_COVID_FINAL_1.pdf (accessed  on Nov 6, 2020). 

[3] Zambrano-Monserrate, M. A.; Ruano, M. A.; Sanchez-Alcalde, L.: Indirect  effects of COVID-19 on the environment. Science of The Total Environment,  728, 138813 (2020). http://doi:10.1016/J.SCITOTENV.2020.138813. 

[4] Covas anuncia auxílio a catadores de recicláveis durante pandemia de  coronavírus Available online: https://g1.globo.com/sp/sao paulo/noticia/2020/03/31/covas-anuncia-auxilio-de-r-600-a-catadores-de reciclaveis-durante-pandemia-de-coronavirus.ghtml (accessed on Nov 6, 2020). 

[5] Decisão judicial suspende a proibição do uso de descartáveis plásticos - Plástico  Industrial Available online: http://www.arandanet.com.br/revista/pi/noticia/234- Decisão-judicial-suspende-a-proibição-do-uso-de-descartáveis-plásticos. 

[6] Kalina, M.; Tilley, E.: “This is our next problem”: Cleaning up from the COVID 19 response. Waste Management, 108, 202–205 (2020).  http://doi:10.1016/J.WASMAN.2020.05.006. 

[7] Gualtieri, M.; Andrioletti, M.; Vismara, C.; Milani, M.; Camatini, M.: Toxicity of  tire debris leachates. Environment International, 31, 723–730 (2005). http://doi:10.1016/j.envint.2005.02.001. 

[8] Nelson, S. M.; Mueller, G.; Hemphill, D. C.: Identification of tire leachate  toxicants and a risk assessment of water quality effects using tire reefs in canals.  Bulletin of Environmental Contamination and Toxicology, 52, 574–581 (1994). 

[9] Zanchet, A.; de Sousa, F. D. B.; Crespo, J. S.; Scuracchio, C. H.: Activator from  sugar cane as a green alternative to conventional vulcanization additives. Journal  of Cleaner Production, 174, 437–446 (2018).  http://doi:10.1016/j.jclepro.2017.10.329. 

[10] Cox, K. D.; Covernton, G. A.; Davies, H. L.; Dower, J. F.; Juanes, F.; Dudas, S.  E.: Human consumption of microplastics. Environmental Science & Technology,  53, 7068–7074 (2019). http://doi:10.1021/acs.est.9b01517. 

[11] Mason, S. A.; Welch, V. G.; Neratko, J.: Synthetic polymer contamination in  bottled water. Frontiers in Chemistry, 6, 407–407 (2018).  http://doi:10.3389/FCHEM.2018.00407. 

[12] Kosuth, M.; Mason, S. A.; Wattenberg, E. V.: Anthropogenic contamination of  tap water, beer, and sea salt. PLOS ONE, 13, e0194970 (2018).  http://doi:10.1371/journal.pone.0194970. 

[13] Liebezeit, G.; Liebezeit, E.: Synthetic particles as contaminants in German beers.  Food Additives & Contaminants: Part A, 31, 1574–1578 (2014).  http://doi:10.1080/19440049.2014.945099. 

[14] Schwabl, P.; Köppel, S.; Königshofer, P.; Bucsics, T.; Trauner, M.; Reiberger,  T.; Liebmann, B.: Detection of various microplastics in human stool: A  prospective case series. Annals of Internal Medicine, 171, 453 (2019).  http://doi:10.7326/M19-0618. 

[15] Necropsia aponta que pinguim encontrado morto no litoral de SP engoliu  máscara | Vale do Paraíba e Região | G1 Available online:  https://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2020/09/15/necropsia aponta-que-pinguim-encontrado-morto-no-litoral-de-sp-engoliu-mascara.ghtml  (accessed on Sep 16, 2020). 

[16] Fraga, S. C. L.: Reciclagem de materiais plásticos: Aspectos técnicos,  econômicos e sociais; Érica: São Paulo; 

[17] de Sousa, F. D. B.: Pros and cons of plastic during the COVID-19 pandemic.  Recycling, 5 (2020). 

[18] Woolridge, A. C.: ISWA: Covid-19: A letter concerning healthcare waste  Available online: https://www.iswa.org/home/news/news-detail/article/covid-19- and-healthcare-waste/109/ (accessed on May 5, 2020). 

[19] Chin, A. W. H.; Chu, J. T. S.; Perera, M. R. A.; Hui, K. P. Y.; Yen, H.-L.; Chan,  M. C. W.; Peiris, M.; Poon, L. L. M.: Stability of SARS-CoV-2 in different  environmental conditions. The Lancet Microbe, 0 (2020).  http://doi:10.1016/S2666-5247(20)30003-3.[20] Waste management during the COVID-19 pandemic - ISWA’s Recommendations Available online:  https://www.iswa.org/fileadmin/galleries/0001_COVID/ISWA_Waste_Managem ent_During_COVID-19.pdf (accessed on May 5, 2020). 

 

 

Autora: Fabiula Danielli Bastos de Sousa 

Entidades: Centro de Desenvolvimento Tecnológico, Universidade Federal de Pelotas;  Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais Aplicadas, Universidade Federal  do ABC.

Telefone: (53) 3284-3880 

E-mail: fabiuladesousa@gmail.com

 



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